sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Pedaladas hermenêuticas no pedido de impeachment de Dilma Rousseff


Com o recebimento, pelo presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, do pedido de impeachment da presidente da República Dilma Rousseff, a questão das chamadas pedaladas fiscais, bem como a abertura de créditos suplementares sem autorização legal, entram no olho do furacão da política nacional, como fundamentos do pedido de afastamento da presidente da República por crime de responsabilidade.

Cumpre destacar, inicialmente, que o processo de impeachment em nosso país não deve ser utilizado quando a população se sente insatisfeita com o não cumprimento das promessas eleitorais, como no instituto do recall, previsto em algumas legislações estaduais norte-americanas para revogar mandatos em razão da perda da confiança popular no governante. Disso não se trata. Também não é o processo de impeachment o foro adequado para estabelecer uma catarse contra o estado endêmico de corrupção nacional ou contra a crise econômica que assola o bolso das famílias brasileiras. Tampouco para estabelecer uma reviravolta no comando político da Nação, subvertendo os resultados eleitorais moldados pelo povo. Seu objetivo é apurar a prática comissiva e dolosa de crime de responsabilidade do presidente da República, capaz de justificar o afastamento, pelo Congresso Nacional, do mandatário maior do país, eleito pela maioria absoluta dos eleitores. Afora essas hipóteses, o que teríamos seria um golpe de estado revestido de uma capa jurídica da moralidade seletiva.

Desde o início do segundo governo Dilma, temos sido críticos em relação a sua política econômica de austeridade que contraria o seu discurso desenvolvimentista de campanha, mas é forçoso reconhecer que a tentativa de enquadrar as chamadas pedaladas fiscais e os decretos que abriram créditos suplementares ao orçamento como crime de responsabilidade, capaz de justificar o impeachment da presidente da República, não passa de uma tentativa de golpe de estado, lastreada em quatro pedaladas hermenêuticas, que forçam a barra dos limites possíveis oferecidos pela literalidade dos textos legais dedicados ao tema.

Senão vejamos. As chamadas pedaladas fiscais nada mais são do que o apelido dado ao sistemático atraso nos repasses de recursos do Tesouro Nacional para que o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal paguem benefícios sociais como o Bolsa-Família, Minha Casa Minha Vida, seguro desemprego, crédito agrícola etc.. Como as instituições financeiras pagam em dia os benefícios, o atraso no repasse dos recursos públicos gera contratualmente o pagamento de juros pelo governo aos bancos públicos. De fato, a conduta, que visa a dar certa aura de equilíbrio às contas públicas em momentos de aperto de caixa, não é boa prática de Finanças Públicas. Mas está bem longe de constituir crime de responsabilidade. 

Os defensores da tese da criminalização das pedaladas alegam que a medida se traduz, na verdade, em operação de crédito entre a União e os bancos federais, o que seria vedado pela Lei Complementar 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Na verdade, o pedido de impeachment que foi acolhido pelo presidente da Câmara dos Deputados, da lavra dos juristas Miguel Reale Júnior, Hélio Bicudo e Janaína Paschoal, parte da premissa de que, em face do adiantamento dos recursos para pagamento dos benefícios sociais pelos bancos e do atraso no repasse desses pelo governo, essas instituições financeiras passariam a deter um ativo contra a União. E que isso equivaleria a uma operação de crédito, vedada pelo artigo 36 da LRF, que proíbe a operação de crédito pelo ente estatal junto a instituição financeira por ele controlada. Temos aí a primeira pedalada hermenêutica.

Na verdade, o nosso Direito Financeiro positivo define o que é uma operação de crédito, quando se encontram no polo passivo as pessoas jurídicas de direito público, no artigo 3º da Resolução 43/2001 do Senado Federal, a quem compete dispor e limitar as operações de crédito contraídas pelos entes federativos, de acordo com o artigo 52 da Constituição Federal. Nesse conceito, como é óbvio, não pode ser inserido qualquer montante constante no passivo contábil da entidade pública. De acordo com tais definições senatoriais, não é possível enquadrar na acepção do termooperações de crédito, o nascimento de débitos com instituições financeiras decorrentes do inadimplemento de obrigações contratuais, como a ausência de repasses de recursos para o pagamento de prestações sociais pelos bancos públicos. Não se pode confundir operação de crédito, que tem um regramento jurídico próprio, inclusive quanto à vedação contida no artigo 36 da LRF, com o nascimento de um crédito em decorrência de um inadimplemento contratual, que, obviamente, não sofre as mesmas restrições. A União, como qualquer outro contratante, deve responder pelo inadimplemento das obrigações por ela assumidas com as instituições financeiras que contrata, ainda que seja controladora dessas entidades.

Mesmo que assim não fosse, a atuação não poderia ser enquadrada em qualquer das hipóteses de crime de responsabilidade do presidente da República por violação da lei orçamentária, conforme previsto pelo artigo 4º, VI da Lei 1.079/50, cujas condutas sancionadas são esmiuçadas exaustivamente no artigo 10 da Lei 1.079/50. É que a manobra contábil, que vem sendo utilizada desde o segundo governo Fernando Henrique Cardoso, sempre com o beneplácito do Tribunal de Contas da União e do Congresso Nacional, ainda que se traduzisse em operação de crédito, o que, vimos, não é o caso, não viola propriamente a Lei Orçamentária Anual (LOA), que constitui o bem jurídico tutelado em todos os tipos do referido dispositivo sancionador dos crimes de responsabilidade, mas a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que com ela não se confunde. Violar a LRF não é a mesma coisa que violar a LOA. Esta última é a norma que prevê todas as receitas e despesas da União. É aqui que as condutas comissivas e dolosas do presidente da República poderão ensejar, em tese, o crime de responsabilidade. Já a LRF é norma geral de Direito Financeiro que orienta a elaboração, controle e fiscalização da LOA, mas que não faz qualquer previsão de receitas e despesas e com a lei de normas gerais não se confunde. É nessa confusão que reside a segunda pedalada hermenêutica, ao utilizar dispositivos legais que tipificam a violação da lei orçamentária como crime de responsabilidade para condutas supostamente violadoras da LRF.

Porém, ainda que assim não fosse, há uma terceira pedalada hermenêutica que consiste na alegação de que qualquer violação à lei orçamentária poderia ser caracterizada como crime de responsabilidade prevista em um dos itens do artigo 10 da Lei 1.079/50. Tal procedimento interpretativo deve ser evitado em nome da supremacia da democracia aos arranjos financeiros necessários a composição do superávit primário em detrimento das prioridades sociais definidas pela sociedade.

Nessa esteira, deve-se evitar a simples subsunção de determinada prática a qualquer desses dispositivos legais, sem qualquer apreciação quanto ao grau de lesão que a conduta isoladamente considerada gera às finanças públicas e ao dolo destinado a essa finalidade pela Presidente da República. Tais cuidados devem ser tomados para que não se possa, por meio de uma tecnicalidade contábil comum na gestão pública nacional, anular a manifestação de vontade do povo brasileiro nas urnas. É nesse ponto que se revela mais sensível o déficit democrático das soluções preconizadas pelos defensores do acolhimento do pedido de impeachment. No que se refere às pedaladas, viu-se que é uma prática utilizada pelos governos desde a introdução da LRF, e que vem sendo acolhida pelo TCU e pelo Congresso Nacional há mais de 13 anos. A tentativa se inserir, a fórceps, tais condutas nos dispositivos legais que preveem o crime de responsabilidade, resvala no oportunismo golpista que não aceita o resultado das eleições.

Portanto, a tentativa de enquadrar as pedaladas fiscais nas hipóteses de crime de responsabilidade não encontra qualquer suporte jurídico.

Outro ponto que alicerça o pedido de impeachment, e que foi acolhido pelo presidente da Câmara, diz respeito a seis decretos, no valor de R$ 2,5 bilhões, que foram baixados em 2015 para abertura de créditos suplementares, supostamente sem a devida autorização legal.

Os créditos suplementares visam a aumentar as dotações orçamentárias destinadas a determinadas despesas, em face da insuficiência dos valores que foram originalmente previstos. Tal procedimento é muito corriqueiro na vida da Administração Pública, uma vez que o orçamento é uma previsão quanto ao que será gasto ao longo do ano, o que, quase sempre, precisa ser revisto à luz dos fatos que acontecem durante a execução orçamentária. Por isso, o Congresso Nacional, por ocasião da elaboração da lei orçamentária anual, já autoriza a abertura de créditos suplementares por decreto do presidente da República, podendo estabelecer limites e condições para o exercício dessa faculdade.

A alegação dos que sustentam a caracterização do crime de responsabilidade se baseia no texto do artigo 4º da Lei 12.952/14, a Lei Orçamentária Anual de 2014 (LOA/14), que condicionou a autorização para a abertura de créditos suplementares ao atingimento da meta de superávit primário estabelecida para o exercício de 2014. Na visão dos defensores do impeachment, na quarta pedalada hermenêutica, como o superávit primário foi obtido mediante as pedaladas fiscais, inexistiria a autorização legal dele derivada.

Quanto a esse argumento, vale destacar, inicialmente, a impropriedade de se falar em limites previstos pela LOA de 2014, no que se refere a créditos suplementares abertos em relação ao orçamento de 2015.

Logo, o que precisa ser verificado é se a abertura dos créditos suplementares em 2015 feriu a lei de orçamento em vigor. Esta, a Lei 13.115/15 (LOA/15), só aprovada em abril de 2015, previu, em seu artigo 4º, texto semelhante ao mesmo artigo da LOA/14, condicionando a abertura de créditos suplementares ao cumprimento da meta dos superávits primários para 2015.

Na verdade, o que ocorreu em 2014, e está ocorrendo em 2015, é que as metas de resultado primário tiveram que ser revistas ao longo do ano, em razão da frustração de arrecadação tributária causada pela crise econômica, o que foi levado a efeito por leis em sentido formal. A consequência automática dessas alterações legislativas é a legitimação da abertura de créditos suplementares por decreto ao longo do ano.

Deste modo, os limites previstos para a abertura de créditos suplementares previstos na lei de orçamento foram revistos antes do final do exercício financeiro. A pergunta a ser feita é se antes da aprovação da lei que altera a meta de resultado primário já é possível a abertura de créditos suplementares com base nos novos limites. Num plano ideal, é claro que é recomendável aguardar-se a aprovação do Congresso Nacional da lei que altera a meta primária para, só então, se utilizar da autorização nela contida para abertura de créditos suplementares. Porém, é forçoso reconhecer que, pela dinâmica adotada pelo próprio legislador, só é possível verificar o implemento da condição para a abertura de créditos suplementares por decreto ao final do exercício em curso, quando se poderá verificar se a meta primária foi atingida, ou ainda, se a meta originalmente prevista foi alterada.

Mas, se o próprio Parlamento, durante o exercício, modifica a meta, está alterando o limite da autorização por ele concedida e convalidando tacitamente a abertura dos créditos suplementares até então efetivadas por Decreto. Foi assim em 2014, com a aprovação da Lei 12.952/14, e tudo indica que será em 2015, já que a Câmara dos Deputados aprovou, no mesmo dia em que o seu presidente acolheu o pedido de impeachment, o PLN 05/15. Assim, não há mais que se falar em abertura de créditos suplementares sem autorização legal em 2014. Em relação ao exercício de 2015, não é possível, antes do final do exercício, constatar se os decretos que já abriram créditos suplementares, extrapolam ou não os limites previstos no artigo 4º da LOA/15, dada a real possibilidade de alteração da meta fiscal que define os contornos desta autorização legislativa. E tudo indica que não haverá extrapolação da autorização legal, dada a aprovação do referido projeto de lei pela Câmara dos Deputados.

Quanto a essa possibilidade de alteração da meta fiscal condicionante da abertura de créditos suplementares até o final do exercício, vale destacar que também é prática não recomendável do ponto de vista do planejamento orçamentário. Porém, as vicissitudes econômicas ocorridas durante o exercício, têm levado, desde 2001, o Poder Executivo, o TCU e o Congresso Nacional a usar, tolerar e aprovar esse procedimento.

É claro que os órgãos que analisam e julgam as condutas orçamentárias podem mudar a sua jurisprudência, recrudescendo a interpretação de normas e fatos em nome do maior controle das contas públicas. Mas a adoção de efeitos retroativos a tal virada jurisprudência, não viola somente a segurança jurídica, mas também, quando em jogo o mandato da presidente da República, a própria Democracia. Por isso, tais mudanças de entendimento só podem valer para os exercícios vindouros, a não ser que toda essa preocupação com a higidez das normas orçamentárias sirva apenas como pretexto para modificar as consequências do resultado eleitoral, como se tem tentado no Brasil desde o final da apuração dos votos do pleito presidencial.

A mudança de entendimento agora, longe de indicar uma preocupação com o aprimoramento da gestão pública, revela um ardiloso projeto de poder que há quase um ano paralisa o país.

Assim, quanto à suposta abertura de créditos suplementares sem autorização legislativa, também não há caracterização de crime de responsabilidade a justificar o impeachment da presidente Dilma.

Porém, como o julgamento tem um indiscutível tom político, já que a Câmara e o Senado, a quem compete julgar a matéria, são instituições eminentemente políticas, não surpreende a tentativa golpista. 

Mas se o julgamento é político, convém indagar se as atuais composições da Câmara e do Senado, em que mais de um terço dos parlamentares responde a inquéritos ou ações criminais, se encontram em condições morais de afastar uma presidente da República eleita por 55 milhões de brasileiros, por não ter repassado tempestivamente os recursos para o pagamento dos benefícios sociais que o seu governo criou ou ampliou, ou, ainda, por ter aberto créditos por decreto que foram posteriormente confirmados por lei? 

Seria a primeira vez na história da humanidade que um presidente eleito pelo povo seria cassado por seu governo ter obtido empréstimos a bancos públicos ou por ter aberto crédito orçamentários, e isso levado a efeito por um parlamento composto por vários políticos sabida e gravemente envolvidos com corrupção, o que, pelo se sabe, não é o caso da presidente. 

Os golpes no Século XXI não utilizam mais de tanque e baionetas, mas de manipulação de argumentos jurídicos e políticos que querem usurpar o papel da soberania popular na escolha dos governantes.

Espero que não seja o caso do nosso país.

Agora vamos ver quem tem, de fato, compromisso com o Estado Democrático de Direito!

Ricardo Lodi Ribeiro é advogado, professor de Direito Financeiro da UERJ e diretor eleito da Faculdade de Direito da UERJ.

Revista Consultor Jurídico, 4 de dezembro de 2015, 8h55

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