sábado, 23 de março de 2013

O homem que assombra Gurgel

Reconduzido ao Conselho do MP, o professor de Direito Luiz Moreira virou a principal voz dissonante ao procurador-geral. Crítico do excesso e do poder conferido aos procuradores, ele pode atrapalhar os planos de Gurgel de emplacar seu sucessor

Josie Jeronimo



CONTRACORRENTE
Para Luiz Moreira, o crescimento do MP coloca em questão os fundamentos da Constituição

Um dos protagonistas do julgamento do mensalão, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, enfrenta um ambiente diverso dentro da própria instituição comandada por ele. A voz dissonante é personificada pelo professor de direito Luiz Moreira. No dia 6 de março, Moreira confirmou sua condição de representante da Câmara dos Deputados no Conselho Nacional do Ministério Público, órgão encarregado de controlar e fiscalizar a atividade do MP. Desde então, Gurgel, cujo mandato termina em agosto, anda inquieto. Embora Moreira pretenda ficar longe da disputa entre os candidatos, dependendo do barulho que ele fizer, Gurgel pode ter seus planos de emplacar o sucessor no comando do MP Federal dificultados. A principal crítica de Moreira refere-se ao excesso de gastos promovidos pela atual gestão. A mais recente acusação é de que o procurador-geral estaria preparando um aumento de 30% em subsídios, com a criação de auxílios-moradia e alimentação de R$ 900 por mês. “Esses benefícios irão aumentar em R$ 5 mil os vencimentos dos membros do Ministério Público, que assim passarão do teto constitucional de R$ 28.059”, critica o conselheiro.

Moreira atua na contracorrente do movimento de políticos, juristas e cidadãos que, a partir das denúncias de corrupção contra o governo Fernando Collor, levou à transformação do Ministério Público num organismo cada vez mais autônomo e poderoso. Para o professor especialista em teoria do estado e filosofia do direito, o crescimento do Ministério Público, acompanhado pela ampliação de poderes acumulados pelo Supremo Tribunal Federal, coloca em questão os fundamentos da Constituição-cidadã de 1988. “A base da nossa Constituição é o voto popular e por isso ela privilegia os representantes eleitos pelo povo. A judicialização leva a uma República aristocrática, que privilegia decisões e concentra poderes entre os integrantes de um poder não eleito, o Judiciário”, afirma Moreira. Como exemplo, ele recorda as intervenções recentes do Supremo no debate sobre royalties do petróleo, questionando decisão do Congresso. “A Constituição define que a deliberação se faça pelo Congresso”, diz. Em outro exemplo, aponta a votação sobre a perda de mandatos dos parlamentares condenados no mensalão, decisão que, na opinião de vários juristas importantes, contraria o que dispõe o artigo 55 da Constituição.

Concorde-se ou não com a tese defendida por Moreira, o portentoso crescimento da instituição dirigida por Roberto Gurgel está amparado em fatos. Como conselheiro do MP, ele questiona com veemência esses números. Por exemplo, o orçamento do Ministério Público da União, que incluiu as representações nos Estados, custa R$ 4,1 bilhões, e já é maior do que o do Senado Federal, de R$ 3,5 bilhões. Em dez anos, as despesas com pessoal cresceram 193%. Avançando no sempre delicado terreno das garantias individuais, os procuradores federais, sob Gurgel, também adquiriram o Guardião, sistema de escuta telefônica privativo da Polícia Federal, que só pode utilizá-lo com autorização judicial. Foi preciso uma decisão do Supremo para que abrissem mão do equipamento. Em alguns Estados, no entanto, o Ministério Público local ainda mantém a posse do Guardião.

Adesavença de Moreira com Gurgel tornou-se irremediável em 2010, quando ele denunciou que, em campanha pela recondução, o procurador-geral liberou uma espécie de presente aos seus subordinados entre R$ 60 mil e R$ 90 mil a título de benefícios atrasados. Gurgel argumenta que a liberação tinha base legal. O detalhe é que os pagamentos saíram em duas parcelas, quando poderiam ter obedecido a prazos mais longos. Em 2011, uma nova parcela de atrasados custou R$ 150 milhões.



Amigo pessoal do deputado petista José Genoino, um dos condenados pela Ação Penal 470, Moreira é dono de uma visão política que lhe garante a simpatia compulsória da maioria dos políticos sob investigação do Ministério Público e ajuda a explicar a facilidade com que seu nome foi aprovado nas duas Casas do Congresso. Mas o debate promovido por Moreira não gira em torno de interesses menores. A questão é doutrinária e envolve um entendimento político real.

Em posição contrária, o procurador Claudionor Mendonça dos Santos, de São Paulo, acredita que o Ministério Público e o Judiciário cumprem uma função política necessária, que consiste na punição de políticos numa sociedade que, conforme suas palavras, “está aquém do conceito amplo de cidadão.” Tocando em pontos delicados empregados por cada eleitor para escolher seus candidatos, Mendonça dos Santos critica as escolhas de determinados eleitores: “Muitos ainda votam pela cesta básica, pela a camisa do time.” Para o procurador de São Paulo, “a sociedade tem todo o direito de saber se errou ao escolher aquele cidadão. É possível apontar o erro do voto.” Questionado se essa visão não encobre uma interferência externa na luta democrática entre partidos políticos, Mendonça dos Santos afirma que não vê “paternalismo” em sua postura.

Toda essa discussão sobre gastos, poderes e limites dos procuradores será inevitavelmente travada no Ministério Público quando a disputa pela sucessão de Gurgel começar para valer. Hoje, existiriam quatro candidatos. Quem baterá o martelo sobre o próximo comandante do Ministério Público Federal é a presidenta Dilma Rousseff. Interessado em emplacar um nome ligado a ele, o procurador-geral já esteve em situação mais confortável. Hoje, além dos questionamentos internos, a Mesa do Senado examina dois pedidos de impeachment para afastá-lo do cargo antes do fim do mandato. Num deles, o procurador é acusado de dirigir uma licitação para a compra de computadores com valor acima do mercado. Em outro, é acusado de, em parceria com o ex-presidente José Sarney, oferecer favores em troca de apoio político diante da denúncia de que deixara de investigar as ligações de Demóstenes Torres (DEM-GO) com Carlinhos Cachoeira.



TURBULÊNCIAS INTERNAS
Protagonista da denúncia do mensalão, Gurgel não é mais unanimidade no Ministério Público

Durante a campanha para escolha do sucessor do procurador-geral haverá outra questão relevante a ser debatida. É a PEC 37, emenda constitucional que retira do Ministério Público qualquer poder de investigação policial, devolvendo essas atribuições à polícia, como acontecia antes de 1988. Apoiada pelos eficientes lobistas das diversas polícias em atividade no Congresso, a PEC 37 ganha força toda vez que os parlamentares se sentem desprestigiados pelos procuradores. Eles têm apoio de grande parte dos prefeitos dos maiores municípios do País, que acusam o Ministério Público de criar entraves a sua gestão a partir de medidas judiciais que apenas escondem divergências políticas. Embora seja um crítico duro dos procuradores, Luiz Moreira acha que é preciso encontrar uma solução intermediária. “Não é recomendável que uma só instituição tenha todo poder de investigar um crime. O mais saudável é que haja uma colaboração entre procuradores e policiais, com cada área preservando sua competência específica. Se não é certo dar todo poder ao Ministério Público, também não se pode deixar tudo nas mãos da polícia. A experiência mostra que isso não funciona”, avalia.

Ao menos um tema parece ser consenso entre candidatos que disputam o posto de Gurgel. Nenhum deles propõe diminuir os atuais benefícios dos procuradores, nem mesmo as férias de 60 dias, herança do Judiciário. Quando a Lei de Transparência obrigou o Executivo e o Legislativo a abrir os vencimentos de todos os seus integrantes, o MP entrou na Justiça para deixar os procuradores fora da obrigação. Foi atendido. “O Ministério Público não oferece à sociedade a transparência que cobra de outros setores,” critica Moreira.

terça-feira, 5 de março de 2013

Combater a inflação, mexer no emprego

Os investimentos levariam, ao longo do tempo, a aumentos de produtividade que permitiriam a adequação da economia aos salários atuais (e ao forte mercado de trabalho)

"por ARTIGO - ILAN GOLDFAJN
05/03/2013 0:00

A inflação subiu no Brasil e, com ela, as preocupações do governo. O discurso recente tem enfatizado o compromisso no combate à inflação. Melhor assim. É necessário transmitir a ideia de que há um guardião da inflação para evitar aumentos contínuos de preços. Se subir muito, caem as vendas, perde-se mercado. É a âncora da economia. Mas não há almoço grátis, o combate à inflação requer estar disposto a abrir mão de coisas valiosas. A sociedade está preparada para (temporariamente) reduzir o consumo e desaquecer o mercado de trabalho para reduzir a inflação?

Ninguém gosta de fazer essa opção. Às vezes nem é necessário. A maioria dos países vizinhos na América Latina está crescendo forte, com inflação em queda (Peru cresce 6,3%, com inflação de 2,6%; Chile, 5,6%, com 1,5% de inflação; México, 3,9%, com inflação de 3,6%, etc.). É que uma vez combatida a inflação, a estabilidade econômica e a melhora na produtividade favorecem crescimento forte com baixa inflação.

Mas, no Brasil, as opções estão mais difíceis. Recentemente, tem ocorrido o inverso dos nossos vizinhos: inflação em alta e crescimento tímido. O Banco Central (BC), na última ata, chamou a atenção para as “limitações pelo lado da oferta”. O problema não é a falta de consumo, que tem crescido de forma robusta. É necessário produzir a um custo menor (mais produtividade) para crescer sem pressionar a inflação. Nesse caso, estímulos ao consumo não resolvem, podem até exacerbar o problema, pois distanciam a demanda do que pode ser ofertado sem inflação crescente.

Muitas vezes as soluções parecem caminhar na direção correta, mas podem não resolver o problema. Por exemplo, a desoneração de impostos na economia é um objetivo nobre a perseguir. Afinal, a alta e complexa carga tributária da economia brasileira é um gargalo ao crescimento. No curto prazo, os subsídios e corte de impostos de fato podem reduzir os preços e ajudar a combater a inflação. Mas, ao longo do tempo, se as desonerações e os menores preços estimularem ainda mais o consumo, sem correspondente aumento da oferta, o problema inflacionário persistirá.

Apesar da redução da tarifa de energia elétrica, que teve impacto relevante no índice de fevereiro, a inflação não tem cedido como desejado. Neste início de ano, a inflação continuou elevada, no acumulado em 12 meses deve oscilar entre 6,2% e 6,6% até o final do terceiro trimestre, quando pode começar a recuar. A pressão dos alimentos tende a ser revertida, pelo menos parcialmente, e a queda do preço das commodities agrícolas no mercado internacional pode ajudar. Porém, observa-se uma maior disseminação no aumento de preços. O mercado de trabalho aquecido tem gerado aumentos de salários que, repassados aos preços, têm gerado resistência à queda da inflação.

Na atual conjuntura talvez seja necessário desaquecer temporariamente tanto o consumo, adequando-o, no curto prazo, à oferta mais restrita, quanto o mercado de trabalho, para permitir adequar os aumentos de salários ao crescimento da produtividade do trabalho. Nesse caso, as desonerações apenas adiariam a necessidade desses ajustes para adiante.

Pode-se argumentar que a desaceleração do consumo e/ou do mercado de trabalho não seja necessária. Bastaria controlar as expectativas no curto prazo para evitar reajustes defensivos de preços, desonerar alguns preços no curto prazo, ganhando tempo para que haja uma reação pelo lado da oferta: mais produção baseada em mais investimentos. Os investimentos levariam, ao longo do tempo, a aumentos de produtividade que permitiriam a adequação da economia aos salários atuais (e ao forte mercado de trabalho).

O problema é que a retomada dos investimentos, em particular, tem ocorrido de forma lenta, enquanto o consumo e o mercado de trabalho continuam robustos. No ano de 2012, a economia cresceu 0,9%. O investimento teve queda de 4% no ano passado. O consumo das famílias e os gastos do governo continuaram crescendo firmes, em 3,1% e 3,2%, respectivamente.

Projeta-se uma retomada modesta do atual ritmo de crescimento do PIB para 3% em 2013. Apesar do baixo crescimento projetado, espera-se que a taxa de desemprego continue baixa, mantendo o mercado de trabalho apertado e aumento dos salários reais. Boas notícias para um lado da economia, mas, por outro, dificultam o combate à inflação.

Pleno emprego, salários altos e consumo forte têm sido valiosos para a economia brasileira. A inflação sob controle também é um valor. Não está claro se há consciência na sociedade de que, para manter a inflação sob controle, possa ser necessário temporariamente reduzir o consumo e desaquecer o mercado de trabalho.

Ilan Goldfajn é economista-chefe e sócio do Itaú Unibanco"

Fonte: O Globo

Mensalão não disciplinou regras para compliance

CONFUSÃO DE TEORIAS

Por Tadeu Rover

Pense no caso de um diretor de uma instituição financeira que aprova e coloca no mercado um produto cuja regularidade foi confirmada pelo departamento jurídico interno e pelo setor decompliance e, posteriormente, o Ministério Público Federal e o Banco Central consideram aquele produto irregular. O diretor certamente afirmará que atuou com respaldo de um parecer técnico. Qual é a consequência jurídica dessa alegação?

“Essa situação é bastante grave e atual”, afirma o professor Alaor Leite, mestre em Direito pela Universidade Ludwig Maximilian, de Munique, que nesta segunda-feira (4/3) discorreu sobre "A Problemática do erro e concurso de agentes (autoria e participação)”, em palestra na Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, a DireitoGV, em São Paulo. No encontro, o professor abordou dois problemas ligados à criminalidade em empresas: a atuação conforme informações técnicas e a divisão de responsabilidade penal em estruturas empresariais complexas.

Segundo o professor, o primeiro caso é cada vez mais corriqueiro: alguém que em um escalão superior da empresa atua conforme um parecer técnico exarado por alguém ou por um órgão de um escalão inferior especializado — um departamento jurídico interno, por exemplo. Caso o parecer técnico seja posteriormente considerado "equivocado", aquele que tomou a decisão pode ser penalmente responsabilizado. E certamente afirmará que tomou sua decisão com base em um parecer.

Para o professor, nesses casos o critério fundamental para análise deve ser a confiabilidade do parecer. Segundo Alaor Leite, para uma fonte ser confiável, deve ter qualidades formais básicas, perceptíveis ao leigo que solicita a informação. Além disso, deve ser imparcial. “Imparcial não significa que a fonte não tenha nenhuma relação com aquele que solicita a informação. Imparcialidade deve ser compreendida como ausência de interesse próprio na decisão que se vai tomar.”

De acordo com Alaor, um dos problemas é a questão da confiabilidade de um setor jurídico interno. “Não há sentido em se estabelecer um departamento juridico interno se as informações repassadas não puderem ser objeto de confiança daquele que toma decisões.” Ele esclarece que pode acontecer de o alto escalão mascarar um projeto para ser aprovado ou então de um departamento jurídico dar um parecer como espécie de escudo para proteger o adminstrador. “Nesses casos, há que se pesquisar a responsabilidade de ambos. Mas, em princípio, não se pode negar a confiabilidade de um departamento jurídico interno.”

Em casos de desconfiança de manipulação ou compra de parecer para proteger o administrador, Alaor Leite propõe um terceiro critério. “Aquele que atua em um ambiente complexo é leigo em matéria jurídica, mas não é leigo sobre seu negócio. Caso uma informação repassada seja implausível e essa seja perceptível para o leigo, esse parecer não pode ser objeto de confiança.”

O professor ressalta que há no Brasil uma doutrina dominante que diz que basta que o sujeito saiba que o fato é proibido, sendo ou não punível penalmente. “Além de irrazoável, essa exigência é equivocada, especialmente em âmbitos especializados e complexos”, diz.

Caso mensalão
Nessa linha de raciocínio, o professor lembrou do caso do mensalão, julgado recentemente pelo Supremo Tribunal Federal. Segundo ele, a teoria de domínio do fato não é aplicável aos casos de corrupção. “Não é uma teoria aplicável a todos os delitos. O principal para o qual ela não é aplicável é o grupo de delitos de dever. E o maior exemplo é o de corrupção. Não se trata de um delito que se tem que avaliar o domínio do fato. Tem que se avaliar se um funcionário violou o seu dever. Para o caso de corrupção, o domínio do fato não é aplicável.”

Além disso, o professor considerou desnecessária a discussão sobre a teoria durante o julgamento. "A teoria de domínio do fato foi desenvolvida para distinguir entre autor e partícipe. Ela não decide sobre o 'se', ela decide sobre o 'como'", afirmou. Ele lembrou que o artigo 29 do Código Penal sequer distingue entre autor e partícipe do crime. "Não há facilitação maior para imputação do que a adoção de uma teoria que sequer distingue quem é autor quem é participe. Era desnecessária a adoção de uma teoria que distingue diante de uma legislação que não distingue."

Para ele, não ficou claro, no julgamento do mensalão, se a imputação foi por ação ou por omissão imprópria. “O que se pode ver é que boa parte da argumentação se dá em função da posição que tal pessoa ocupava e se devia saber de determinado fato. Esse tipo de imputação deixa transparecer uma estrutura de omissão imprópria. A pessoa estava na posição de garantidora e deveria impedir o cometimento de delitos pelo escalão inferior.” Segundo o professor, é importante que se tenha claro qual foi a estrutura de imputação, uma vez que essa decisão vai balizar todas demais.

De acordo com Alaor Leite, também não ficou clara a posição sobre o compliance no caso do mensalão. “Ao que parece, foram autorizadas operações muito fora dos padrões permitidos pelas instituições financeiras. Nesse caso, tem-se possivelmente uma informação implausível, que aquele que atua no setor financeiro sabe os limites, e a questão é se aquele que oferece uma informação e que não tem o poder de decidir pode ser punido pelo repasse da informação”, explica.

Tadeu Rover é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 4 de março de 2013