sábado, 8 de novembro de 2014

“Os partidos políticos brasileiros estão viciados na ideia da Suécia tropical”

Ex-ministro de Assuntos Estratégicos do governo Lula, Roberto Mangabeira Unger defende uma alternativa ao atual modelo econômico brasileiro, que “chegou ao fim”

PEDRO MARCONDES DE MOURA

O ex-ministro Roberto Mangabeira Unger (Foto: Alan Marques/Folhapress)

O professor da Universidade Harvard, Roberto Mangabeira Unger, desembarcou no Brasil na semana passada. O carioca, de 67 anos e sotaque estrangeiro, veio proferir uma série de palestras sobre o seu assunto preferido: um plano de longo prazo para o desenvolvimento do país. Entre um encontro e outro, o ex-ministro de Assuntos Estratégicos do governo Lula recebeu ÉPOCA em um hotel na zona oeste de São Paulo. Para ele, os políticos brasileiros não conseguem pensar em nada além do social enquanto o modelo econômico atual do país se esgota. Na gaveta, o intelectual guarda um apanhado de ideias para “colaborar com a presidente Dilma Rousseff, independentemente de cargo” em um novo ciclo.

ÉPOCA – A economia brasileira parou de crescer. O modelo de incentivo ao crédito e ao consumo se esgotou?
Roberto Mangabeira Unger – O primeiro mandato de Dilma representa o fim de um ciclo iniciado com Fernando Henrique Cardoso. Foi um período que, após a estabilização monetária, optou-se por esta estratégia. Basicamente é uma economia com um setor de commodities altamente eficiente, mas que emprega pouco. Há também uma vasta economia de serviços, que em sua maioria é pouco produtiva. Nós nos desindustrializamos. Qualitativamente, o perfil de produção e de exportação regrediu. Uma massa de gente ascendeu a padrões mais altos de consumos e milhões saíram da pobreza. Passaram, então, a exigir serviços do Estado, como educação, saúde e segurança. E aí chegamos ao estado atual. A viabilidade econômica do modelo atual chegou ao fim. O Brasil não pode mais avançar.

Época – Quais as consequências sociais disto?
Mangabeira Unger - Há duas grandes reivindicações importantes que explicam o descontentamento generalizado. A primeira é manter a renda e o emprego, o que significa encontrar uma nova estratégia de crescimento. Já a segunda é a qualificação e não apenas a expansão quantitativa dos serviços públicos. Estes dois problemas são ligados. Sem crescimento fica difícil investir na qualificação e sem gente capacitada fica difícil organizar um novo paradigma de produção. É um circulo vicioso a se enfrentar.

Época – Então qual é o caminho de um novo ciclo de crescimento?
Mangabeira Unger - Começando pelas medidas de médio e longo prazo, primeiro deve-se fazer uma política voltada ao agente econômico mais importante: a multidão de pequenas e médias empresas. Elas produzem a maior parte dos produtos e a maioria dos empregos, mas a grande maioria é retrógrada tecnologicamente e organizativamente. Se conseguíssemos socorrer ainda que pequena parte desta massa empreendedora, seria uma revolução. Só que a nossa política industrial, reduzida em linhas gerais, é tirar o dinheiro do trabalhador reunido no FAT e entregar ao BNDES, que, por sua vez, repassa para vinte grandes empresas bem relacionadas que financiam campanhas eleitorais. Enquanto isto, aquela massa de empreendedores não tem nada, nem acesso ao crédito, nem à tecnologia, nem ao conhecimento.

Época – Como socorrer essas empresas pequenas e médias?
Mangabeira Unger - Temos outra tarefa que é mudar o nosso modelo de produção industrial: de grande escala, datado do século passado, organizado no sudeste no Brasil. Temos de perguntar se o resto do país tem de ser como uma São Paulo de meados do século passado para depois virar outra coisa. Não deveria ser. Deveríamos organizar uma travessia direta e libertar o país do purgatório do fordismo tardio. Isto seria uma tarefa institucional de coordenação estratégica descentralizada entre os governos e os pequenos e médios produtores e de concorrência cooperativa entre eles para que pudessem competir, mas, ao mesmo tempo, pudessem fazer mutirões de recursos e ganhar economia de escala. Já a segunda vertente é organizar um ensino capacitador. Porque, caso contrário, este tipo de modelo econômico não se viabiliza. A terceira vertente é o aprofundamento de mercado de capitais para multiplicar os canais que mobilizem a poupança para os investimentos em longo prazo. Aproveitar parte do vasto capital que existe nos sistemas previdenciários para colocar em fundos administrados de forma profissional e competitiva, sem controle do Estado, para que invistam em empreendimentos emergentes. A quarta seria fazer em cada setor da economia em que temos vantagens comparativas o que já fizemos na agricultura, que sofreu uma revolução por causa da ciência e da tecnologia graças à Embrapa.

Época – E no curto prazo, o que pode ser feito?
Mangabeira Unger - Primeiro, desonerar radicalmente o investimento e a exportação Depois, separar política monetária e o câmbio. A estabilidade monetária não pode ter uma âncora cambial. O câmbio apreciado mata a produção. Mas para poder separar é preciso ter grande disciplina fiscal.

Época – Não estamos tendo esta disciplina fiscal.
Mangabeira Unger - Eu acho que o sacrifício fiscal até certo ponto é inevitável. Agora, precisa saber para qual projeto serve. Uma coisa é exigir sacrifício da população para viabilizar esta combinação de tentativa de perpetuação do modelo anterior com rendição ao mercado financeiro. Isto é um sacrifício injustificado. Outra coisa é ter um sacrifício para poder dar os primeiros passos na construção de uma alternativa. E é esta agora a opção decisiva no segundo mandato da presidente Dilma.

Época – Economistas ortodoxos dizem que é necessário resgatar a confiança do mercado para começar um novo ciclo de crescimento por meio do investimento?
Mangabeira Unger – A curtíssimo prazo, a confiança do mercado pode oferecer um benefício, mas não é algo que dure ou importe. O que importa, de fato, é a economia real. É comum dizer que é preciso passar por uma estratégia que beneficie o investimento, mas as pessoas não se dão conta de quanto há de diferença entre a democratização da demanda e a democratização da oferta. É possível fazer a democratização da demanda por uma simples recolocação de dinheiro. A da oferta, não. Exige uma reorganização, passa por inovações institucionais. É uma tarefa qualitativamente diferente e para qual não estamos preparados.

Época – A ampliação da taxa de juros pós-eleição e os nomes alinhados ao mercado financeiro cogitados para a equipe econômica não sinalizam uma aproximação do governo com o mercado?
Mangabeira Unger – Discute-se quem vai ser o ministro da Fazenda, mas pouco se debate qual deve ser a alternativa para a produção. Esta escolha não tem importância se comparada a outro tema. Porque se houver uma estratégia de produção, o ministro da Fazenda pode ser qualquer um. E, se não houver uma alternativa de produção, nenhum ministro pode salvar a situação.

Época – E o senhor acha que Dilma vai manter ou mudar o modelo?
Mangabeira Unger - Conheço a presidenta há mais de 35 anos. Eu trabalhei com ela no PDT, nosso aliado era Brizola. Acho que ela tem muita empatia com propostas deste tipo e, além disto, tem um espírito de luta. Mas esta mudança é difícil, porque, primeiro precisa formular um ideário que vai além de obras físicas ou de investimento de dinheiro. É um ideário de inovação institucional e nós não estamos acostumados a isto. Teria de romper com o discurso político hegemônico dos partidos no Brasil, que é o discurso da Suécia tropical.

Época – Como é este discurso da Suécia Tropical?
Mangabeira Unger - É uma fantasia. Não é a Suécia real. A Suécia real passou por décadas de luta sobre o acesso ao poder político e as oportunidades econômicas. Depois, ao final, veio a organização de políticas sociais. Nós queremos ter o epílogo sem ter a narrativa anterior. Isto é a Suécia tropical. Nós temos uma vida política viciada nesta retórica barata. Os dois partidos que se tem na conta de modernos no Brasil, PT e PSDB, são as duas vertentes, as duas vozes desta ideia. O que se dá como moderno no Brasil é na verdade retrógrado. Para mudar, teria de romper com isto e há uma força real no Brasil que sustenta isto que é esta nova classe média. Ela quer ação, quer instrumentos, quer oportunidades.

Época – Esta nova classe média emergente de empreendedores, aparentemente, não está insatisfeita com Dilma?
Mangabeira Unger – Ao contrário, tenho a impressão que esta chamada classe C foi decisiva na eleição. Ela se dividiu no voto e está perplexa. Ela não tem representação, ela não tem voz política. Sente-se órfã, porque tem uma cultura de autoajuda e iniciativa. E ela vê o Estado brasileiro auxiliando estes grandes empresários e não sobra nada para ela. A importância desta classe não pode ser julgada só por sua expressão numérica, ela tem um poder decisivo no imaginário popular hoje.

Época – A insatisfação desta classe está relacionada diretamente as manifestações do ano passado?
Mangabeira Unger - É muito arriscado atribuir um único perfil a estes protestos, Eu vejo um lado bom e um lado ruim neles. O bom é que a massa desta nova classe média ascendendo ao consumo descobriu que o consumo privado não basta para se ter uma vida decente. É preciso ter a prestação do Estado de educação, saúde e segurança. Este descompasso entre o enriquecimento privado relativo e a pobreza do espaço público é então uma das razões da indignação. O lado ruim são os periódicos espasmos de indignação moral que acabam não deixando legado institucional. Nós temos um problema de corrupção cuja essência é a organização do financiamento eleitoral. Mas a realidade que os brasileiros, em geral, não querem reconhecer é que o Brasil é de longe o menos corrupto dos grandes países em desenvolvimento.

Época – Então por que há esta percepção sobre a corrupção?
Mangabeira Unger – Pois não temos imaginação estrutural, não compreendemos os problemas estruturais nem temos uma prática de inovação institucional. É fácil imaginar que todos os nossos problemas ocorrem por vícios morais das pessoas. Coloca na cadeia, condena moralmente. Só que isto não resolve, os fatos já demonstraram. Nós temos problemas estruturais e precisamos descobrir outro caminho para resolvê-los.

Época – O senhor concorda com o modelo defendido por Dilma de um plebiscito para reforma política?
Mangabeira Unger - É muito comum os reformadores do Brasil pensarem que a reforma política é a mãe de todas as reformas, uma condição antecedente. Mas nenhum país reforma a sua política para depois decidir o que fazer com ela. Não acontece assim. A política é reconstruída para resolver uma emergência nacional, para o país andar. Então a transformação ocorre no meio de uma luta para reorientar o caminho social e econômico. Não tem sentido falar em reforma política se não estiver vinculada a uma tentativa clara de reorientar o caminho. Se isto acontecer, aí, sim, defendo uma série de mudanças institucionais de longo prazo. A curto prazo, o que tem que fazer é cortar o vínculo entre a política e o dinheiro, o problema do financiamento eleitoral.

Época – O senhor vê algum partido ou liderança capaz de conduzir essas mudanças?
Mangabeira Unger - Nenhum agora. Os partidos políticos brasileiros estão viciados na ideia da Suécia tropical. Porque isso é o que conhecem. Todos aderiram a essa língua. Mas acho que o povo brasileiro fabrica lideranças “costeando o alambrado”, e os partidos políticos vêm atrás. Aí pode haver uma transformação muito rápida quando há essa reorientação de sensibilidade. Na eleição presidencial, o eleitorado brasileiro tem uma preferência intuitiva pelos outsiders. Chega aos insiders, muitas vezes, por exclusão. Lembre-se, por exemplo, que na eleição presidencial em que o Lula foi eleito em 2002, primeiro tentaram a Roseana Sarney, depois tentaram o Ciro Gomes. Só chegaram ao Lula no final, quando os outros foram queimados. Não precisa a pessoa ser conhecida, a pessoa se fabrica na hora. Os políticos ficam olhando aquelas pesquisas de opinião para ver quem pode ser candidato, que só indicam reconhecimento de nome. O eleitorado não quer isso, quer descobrir quem está mentindo menos, para penetrar a névoa das palavras mentirosas. Nós não podemos prever qual é o caminho desta construção, porque ela depende de uma longa série de acidentes políticos e pessoais. O bom é saber que do outro lado está o povo brasileiro, buscando.

Época – Mudando de assunto, como o senhor viu a vitória do Partido Republicano na eleição de meio de mandato para o Congresso dos Estados Unidos?
Mangabeira Unger - É trágico que o Partido Democrata não tenha conseguido até hoje formular um sucessor ao projeto de Franklin Roosevelt, um projeto que atendesse às aspirações da maioria trabalhadora dos Estados Unidos. Não fez isso e optou por uma série de substitutos. Há um projeto de humanizar a política republicana e essa é a situação geral dos progressistas do mundo. Pergunta: qual o projeto dos progressistas no mundo? Resposta: é o projeto dos adversários deles com desconto de 10%. É a humanização do inevitável. Eles cedem à iniciativa ideológica do adversário e ficam como a “face doce” do projeto dos outros. E isso não serve, não presta

Época – E como avalia o seu ex-aluno Barack Obama?
Mangabeira Unger – Ele nunca lutou por nada. O feito maior dele é tido como a política de saúde. Só que ele nunca propôs este projeto, ele chegou para o Congresso e disse: “vocês é que articulem”. Ninguém muda o mundo sem luta. Ele não gosta de lutar. Ele quer ser amado por todos e não quer sacudir o barco

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