domingo, 18 de maio de 2014

conto RESGATE

Ronaldo Duran

Às cinco da manhã, entra na S10. A quilometragem marca mais de dez anos. Apesar da poeira impregnada, tão própria nos veículos acostumados à estrada de chão batido, em nada perdia para os novos modelos em termo de conforto e segurança. Cuidadoso com o corpo humano, o motorista não prescindia de zelar também pela máquina.

De São José dos Campos, distava uns trezentos quilômetros, quando o relógio de pulso apontou 8h00. À frente, a rodovia mineira e toda a paz que o motorista espera encontrar nessas paragens.

Beirando aos sessenta anos, sentia-se vitorioso. Realizou-se como enfermeiro, gostando do que fazia. “Também reclamo, sou de carne e osso”, brincava diante das pessoas acostumadas a se queixar do emprego. “Mas nenhuma reclamação me faz esquecer o quanto lutei para obter o canudo, entrar na profissão e nela me manter desviando dos obstáculos como Neymar dos zagueiros.”

O diploma universitário para quem vem do interior mineiro – e que não nasceu com as nádegas para a lua - tem o sabor da medalha de ouro que o atleta recebe numa Olimpíada.

Se a formação foi dureza, a atividade profissional não seria moleza.

Divide a rotina no Resgate e na Instituição para adolescentes infratores. A rotina na Fundação Casa, salvo momento crítico, é de longe mais calmo que no Resgate. Envenenamento, atropelamento, suicídio, surto psiquiátrico, assassinato geram as vítimas usuais na rotina do plantonista. Brincadeiras são bem vindas para reduzir a tensão.

Comemorou quando os auxiliares e enfermeiros foram contemplados com a jornada de 30 horas semanais. Teria mais tempo para cuidar dos males na saúde provocados pelo diabetes, que exigia diárias picadas de insulina.

Na caminhonete, aumentou o volume do rádio quando a música Vida Boa, da dupla Victor e Léo, começou a tocar. Curtia a melodia e arranjos. “Os caras são talentosos”, dizia.

As placas à beira da estrada sinalizam que está próximo do destino. Passaria o fim de semana no sítio, retornando no domingo à noitinha para a Capital do Vale.

A esposa ficou em São José dos Campos, mantendo contato por celular. No sítio, depois de acertar o que pedia conserto, ia para farra, não era de ferro. Com o colega, a pescaria à beira de um riozinho. Jogar conversa fora... Ver cavalos, vacas, porcos e aves.

_ Como te disse, vou reduzir o ritmo. Sinto que chegou a hora de aproveitar a vida.

_ Faça isso. Afinal conquistou seu sítio e tem sorte que a patroa não tenha ciúme do carinho que você investe nele.

_ Cê sabe. Todos têm sonhos. Uns querem ser políticos, outros diretores, outros famosos, outros ganhar acima de 10 mil reais. Eu só queria meu pedaço de chão e trabalhar no que eu acredito.

Passadas horas de conversa fiada e nada de peixe, de repente, um incômodo.

_ Hum – sentiu uma dor no peito.

_ Que foi? – perguntou o amigo.

_ Nada – O enfermeiro deu pouco crédito à ligeira dor, conhecida nos últimos meses.

O sábado à noite seria complicado. A situação piorou. Todavia conseguiu dormir. Na tarde seguinte, por telefone, a esposa desaconselhou que pegasse a estrada de volta. Podia tirar abonada na segunda-feira e procurar o médico.

À noite, o enfermeiro teve dificuldade de pregar o olho. Pediu que o amigo o levasse ao pronto-socorro.

Entrar no carro, dificuldade. O amigo teve que colocar o cinto de segurança nele, quase desmaiado.

Uma cidade pequena para quem é de fora se torna metrópole para localizar endereço desconhecido. Rodaram um bocado. Nada de localizar o Pronto Socorro. O enfermeiro, desacordado. Chegaria sem vida ao hospital.

_ Que ironia – comentou o auxiliar de enfermagem, colega de trabalho no Resgate – era prestativo. Exigia o máximo de presteza ao menor chamado de socorro. Dedicado. E acabar morrendo sem auxílio profissional.

*Ronaldo Duran, autor do livro Desaparecidos.

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